sábado, 26 de fevereiro de 2011

Um brasileiro na noite da vitória de Obama

* Artigo escrito logo após a vitória de Obama em novembro de 2008.

Cheguei aos EUA em agosto de 2008 para terminar meu doutorado em Ciência Política em Yale. A campanha de Obama tomava as ruas de New Haven, cidade conhecida por ser sede desta prestigiosa Universidade. Por onde olhava havia cartazes e adesivos do candidato e seu vice. O Estado de Connecticut é conhecidamente democrata, ainda mais em meio a estudantes universitários. No entanto, talvez aqui a possível vitória de Obama não pudesse ser plenamente comemorada. Ao menos pelo Governing Board da Universisdade, pois afinal George Bush estudou e, provavelmente, concebeu George W. Bush por aqui. Bush filho nasceu no hospital de Yale enquanto Bush pai era aluno de graduação.

A campanha de Obama foi absolutamente fantástica e envolveu a todos. A mobilização popular em torno daquela figura quase mítica definitivamente mudou minha maneira de entender o jogo democrático. Mas essa mudança ocorreu aos poucos.

Tudo começou com os debates televisionados. Pela primeira vez em minha vida fui assisti-los em bares. Meus colegas do Departamento de Ciência Política presenciaram em peso as discussões entre Obama e McCain ou entre Biden e Palin. Mas não estávamos sós. Havia dezenas de alunos e alunas dos mais diversos departamentos e escolas. O mais impressionante é que todos assistiam em silêncio. Algumas vezes se ouvia apupos quando McCain tecia uma ou outra opinião. No geral, um enorme respeito e interesse. Acho importante salientar isso porque assisti a diversos debates no Brasil: entre Lula e FHC, entre Serra e Lula, entre Lula e Alckmin. Todos em minha casa e entre poucos. Quando me encontrei nos bares de New Haven me perguntei se seria possível assistir debates políticos em bares, em São Paulo. Provavelmente sim. A diferença é que, para mim, os debates no Brasil eram importantes demais para se assistir em qualquer bar. Minha experiência aqui mostrou que debates são efetivamente manifestações públicas da política. Assistirei os próximos debates de candidatos brasileiros no bar mais próximo. Mas este não foi o aprendizado essencial.

Os debates da campanha americana foram interessantes por seu aspecto previsível: observar a juventude elitizada e internacionalizada de Yale definitivamente preocupada com o futuro do país. Não se pode dizer que ali se encontrava apenas uma maioria democrata. Era mais do que isso. Tive a impressão que todos eram democratas, inclusive os alunos do departamento de Economia. Aliás, dizem que há uma liga de estudantes republicanos por aqui. Já me disseram, contudo, que agora são apenas fantasmas que rondam a antiga sede da Economia.

No dia da eleição, o Departamento de Ciência Política preparou uma grande festa. O óbvio viés institucional dado aos democratas foi colocado às claras, algo que, deve ser digno de nota, para professores que se dizem bipartidários ou cientistas neutros. A partir das 19h uma recepção – sempre com comida e bebida farta – aconteceria no MacMillian Center, luxuoso prédio de relações internacionais logo em frente ao Departamento. Por cerca de três horas poderíamos assistir a cobertura eleitoral da CNN e beber a vontade. Nesse ínterim, as urnas dos Estados do meio-oeste se encerrariam e os primeiros resultados do leste e sul começariam a aparecer na tela.

Quando lá cheguei o salão estava absolutamente tomado por alunos, só que agora, não mais em silêncio. O Departamento tentou dar um ar mais sério à festança ao selecionar dois professores - famosos e inteligentes - para comentar os resultados à medida que eram divulgados. Contudo, os dois já estavam ébrios e excitados demais para comentar qualquer coisa seriamente, mesmo porque ninguém prestava atenção no que tinham a dizer. O fato é que ambos vibravam com os alunos a cada resultado anunciado pela TV e esqueciam que deveriam permanecer serenos e sóbrios.

As pesquisas de boca de urna indicavam vitória de Obama, principalmente com a possível conquista de Estados chaves como Ohio e Pennsylvania. A cada chamada da TV o salão entrava em ebulição. Quando a CNN indicou vitória de Obama na Pennsylvania o lugar entrou em euforia. A vitória derradeira estava muito perto. Restava esperar o fechamento das urnas na costa Oeste e celebrar. Nesse instante, um colega chegou ao meu lado chorando e disse que essa era o momento político mais importante de sua vida. Tinha 26 anos e me disse que começou a se interessar por política nos terríveis anos Bush Filho. Para ele, analisar a política americana sempre teve um gosto amargo e pouco inspirador. As coisas mudaram quando ele começou a acreditar em Obama. Eram oito anos de espera que pareciam culminar em um final feliz.

Com efeito, foi a partir do resultado de Ohio que a situação começou a ficar emocionalmente interessante. Até onde pude observar, no Departamento de Ciência Política de Yale não há mais do que cinco alunos negros em um total de quase cinquenta. Acredito que desses cinco, apenas um é americano. Os demais são caribenhos ou africanos. Quando a CNN indicou vitória na Pennsylvania este único representante afro-americano estava o meu lado. No mesmo instante sua avó ligou de algum bairro de Pittsburgh, grande cidade daquele Estado. Ele começou a chorar e não parou mais. O mais emocionante não foi apenas vê-lo chorando após as palavras de sua avó – até hoje não sei o que ela disse –, mas ver todos os demais colegas de departamento – brancos e latinos – abraçarem o único aluno fisicamente semelhante à Obama. Foi comovente ver todos em lágrimas, inclusive alguns renomados professores. Não sei quanto tempo irá durar a aproximação que ali observei. Mas valeu cada segundo presenciá-la.

O estado eufórico já havia tomado conta do salão quando anunciaram que o prédio fecharia às 22h. As urnas da Califórnia ainda não haviam sido encerradas. E agora? Corremos ao bar mais próximo. Os alunos de pós-graduação de Yale tem um bar semi-privado na principal rua que corta o campus. O bar admite apenas alunos com carteirinha de pós-graduado de Yale. Os moradores locais e os alunos de graduação não podem entrar. O lugar é, portanto, exclusivo para um grupo de alunos mais elitizado e bastante internacionalizado. Obviamente, o público não reflete nem de perto a realidade americana mais profunda. Mas pouco importava naquele momento.

O local já estava repleto de alunos festejando e comemorando a vitória que se aproximava. As urnas da Costa Oeste fechariam às 23h. Chegado o momento, a ansiedade foi às alturas à espera do anúncio das televisões. Finalmente, a CNN mostrou o Grant Park de Chicago absolutamente tomado pela multidão com a frase no canto da tela “President Elected Obama”. O bar veio abaixo. Imediatamente o DJ começou a tocar “We are the Champions” do Queen. Todos cantavam juntos. Foi realmente impressionante. Mas o melhor ainda estava por vir.

Esperávamos os discursos do vencido e do vitorioso. Quando McCain apareceu na tela, vaias contidas surgiram aqui e ali. O Senador do Arizona proferiu palavras respeitosas e serenas. Ouvimos com atenção e um pouco de sarcasmo. Manifestações radicalizadas não apareceram, mesmo quando o derrotado citou Sarah Palim. Diga-se, de passagem, que na festa de Halloween há alguns dias antes a fantasia mais popular era a da candidata a vice pelos republicanos. O interessante é que a euforia pela vitória não levou os alunos a se colocaram desrespeitosamente contra McCain, pelo menos naquele instante. Ninguém o apreciava, muito menos Palim. Mas depois de vencido não era necessário destratá-lo. Bastava se sentir aliviado pelo fato daquele velho homem não ter chegado à Casa Branca.

O ponto alto seria sem dúvida o discurso de Obama. Ao aparecer no palco montado em Chicago o bar entrou em silêncio total. Subi na cadeira mais próxima para escutar e ver melhor aquela impressionante figura política. Sentia que, mesmo com uma administração possivelmente difícil, se via ali um gigante político. Vencer Hillary e os Republicanos era simplesmente impensável. A primeira frase imprimiu a tom do discurso: “Se ainda há alguém que duvida que nos EUA tudo é possível, que se pergunta se o sonho de nossos fundadores ainda está vivo em nosso tempo, e que questiona o poder de nossa democracia, esta noite é a sua resposta!”. Não era preciso ser americano para se emocionar. Era apenas preciso estar lá e ver tudo aquilo.

De todo o discurso houve um momento que mais me tocou. Ao agradecer aqueles que o ajudaram e contribuíram para sua campanha, Obama disse que a ela se tornou mais forte com a ajuda de jovens que rejeitavam o mito de que sua geração é politicamente apática. O bar vibrou com tais palavras. Dali em diante meu choro e dos colegas mais próximos não parou mais. Foram mais ou menos quinze minutos de forte emoção, passando pela já célebre frase segundo a qual a força dos EUA não vinha de seu exército, mas da crença nos ideais de democracia, liberdade, oportunidade e esperança duradoura. Entretanto, a frase sobre a geração atual ficou em minha memória e pensamentos.

A idéia de que minha geração pouco se importa pela política ou que a geração que me precedeu (60-70) era mais solidária e disposta a enfrentar o mundo por uma causa nobre sempre me soou pretensiosa demais. A participação decisiva de jovens militantes na campanha de Obama em 2008, assim como na campanha de Lula em 2002, eram provas inequívocas de que nossa geração sempre teve muito a dizer. Talvez a diferença esteja no fato de acreditarmos nas atuais regras do jogo político – democracia. Não pretendemos mudá-las. Talvez aperfeiçoá-las de tempos em tempos. Nossa manifestação política se encontra nas urnas a cada dois anos. Os jovens americanos escolheram Obama e acreditaram nas regras existentes para mudar o sistema. Aqueles que festejavam no bar não eram apáticos. Eram jovens que acreditaram no poder da mudança pelas e com as regras.

Quando o Presidente Eleito terminou com as palavras tradicionais de benção aos EUA, olhei a minha volta e todos estavam absolutamente emocionados. Nunca imaginei que um dia veria dezenas de pessoas chorando dentro de um bar. Não é um lugar onde geralmente se chora. A soma de bebida e o momentum pintaram um quadro perfeito e único que dificilmente esquecerei.

Em meio a tão calorosas manifestações, uma colega argentina se aproximou e me confessou que aquele era o momento político mais emocionante de sua vida. Para ela nenhuma eleição ou crise política na Argentina tinha a feito chorar e se emocionar tanto. Ela me disse que agora poderia muito bem trocar de cidadania. Aquelas palavras me fizeram pensar se o mesmo ocorreria comigo. Será que nunca vivi momentos assim no Brasil? Será que haveria em mim uma vontade oculta de mudar de país? A resposta era não. Logo veio em minha mente a primeira vitória do Lula e as ruas de Curitiba, uma cidade para lá de conservadora, vestidas de vermelho. Foi então que percebi que não se tratava de um momento em si apenas. Pelo contrário, se tratava da forma como os jovens enxergam a classe política no poder. Não sei ao certo como isso dava na Argentina de minha colega, mas em meu caso os políticos brasileiros não se estavam tão mal assim.

Embora tenha votado no Lula em todas as eleições desde 1994, me sentia orgulhoso de ver, dois ou três presidentes que transformaram o Brasil para melhor ao longo dos últimos quase vinte anos de democracia. A mediocridade política passou ao largo do país nos últimos anos com algumas exceções. Tivemos sorte de presenciar grandes líderes no exercício do poder. Mesmo quando pensei sobre quem seriam os próximos – Dilma, Ciro, Aécio ou Serra – constatei que continuaríamos no mesmo caminho. Não me senti menor com a experiência que vivi naquela noite. Pelo contrário, me senti inspirado.

Não, o Obama não é brasileiro. Mas ao comparar a incrível capacidade do povo americano de se renovar por meio da escolha de um líder improvável, percebi quão importante é a democracia e, mais ainda, o quão importante foi aquela geração brasileira que lutou contra a ditadura e escreveu a Carta de 1988. Eles definitivamente asseguraram aos brasileiros de minha época a possibilidade de mudar o país a partir de regras equânimes de competição política. Lembrei que Abraham Lincoln, antes de se tornar presidente, achava que sua geração era incomparável àquela dos founding fathers. Nada poderia igualá-los em glória e superação. Apenas lhe restava disputar algum cargo eletivo e, quem sabe, melhorar seu país. Mal ele sabia que seus iguais iriam enfrentar desafios ainda maiores.

Ainda não sei quais serão os desafios que minha geração enfrentará quando alcançar o poder. Também não sei se está preparada para isso, mas sei que o mais difícil já foi realizado pelos que vieram antes: a reconstrução do processo democrático no Brasil. Como disse, minha geração é democraticamente politizada e consegue exprimir sua voz por meio do voto. No entanto, devemos muito àqueles que nos precederam e que muitas vezes nos chamam de desisteressados, ainda que ache isso injusto. Obrigado Obama por aquela noite inesquecível e inspiradora, mas, sobretudo, muito obrigado Ulysses, FHC, Covas, Lula, Darcy, Florestan.......pelos últimos vinte anos de plena liberdade.



Artigo escrito logo após a vitória de Obama em 2008.